quinta-feira, março 30, 2006

Ciência e Religião: o Coming-Out [I]

Ainda um pouco no seguimento do post anterior, vou direccionar-me para algo que me tem incomodado nos últimos dias, nomeadamente o binómio ciência-religião. Ontem assisti com o J. a um documentário recente do Richard Dawkins [na foto], transmitido no Channel4 (Janeiro 2006): The Root of All Evil?. O documentário divide-se em duas partes – na primeira, The God Delusion, Dawkins explica o porquê da religião ser uma antítese da ciência, alerta para o resvalar fundamentalista que várias religiões estão a tomar e das consequências que já se começaram a sentir [é fantástico ver o vazio de fundamentos quando um pastor evangélico norte-americano é confrontado com a teoria da evolução]; na segunda parte, The Virus of Faith, alerta para o problema de incutir nas crianças, desde cedo, as crenças religiosas, sem possibilidade de escolha, dos perigos dos dogmas adquiridos, deixando para trás, a análise racional e crítica. Esta última parte recordou-me da minha infância e da forma como eu vivi a religião: desde cedo que experienciei de perto a realidade da igreja católica apostólica romana. Lembro-me de todos os dias rezar na escola primária, antes e depois das aulas, rezava antes de me deitar. Com 8-10 anos lia tudo o que conseguia sobre o Antigo e Novo Testamento, gravava os episódios de uma série de animação que passava na antiga TVI e a religião exercia sobre mim o fascínio de algo cheio de mistérios que gostaria de ver resolvidos. Actualmente represento aquilo que deve ser a trindade maldita da igreja católica [e também das grandes religiões mundiais]: sou gay, sou ateu e apoio incondicionalmente a teoria da evolução. O que aconteceu? Apetece-me dizer que apareceu o Dragonball, que era muito mais entusiasmante que As Mais Belas Histórias da Bíblia. Mas a verdade é que, aos poucos e poucos, fui ganhando a curiosidade de querer perceber tudo o que se passa à minha volta, de escrutinar a beleza intrínseca do mundo, e conclui que a religião não permitia fazer isso. Quando tinha 17 anos ainda comecei a escrever um texto chamado “O deus que não tem medo de existir” do qual ainda tenho este excerto:

“Nada. Vazio. Plenitude de tudo. E de lá nasceu o mundo como a evidência brutal do desabrochar de uma rosa. Se pudesse ao menos saber porque o fizeste... se é que realmente o fizeste. Sim, fizeste. Disso não duvido. Acho eu. Mas e onde estás tu agora? Estás aí? Estás sim. Sei que estás, não me perguntem porque o sei, sei-o simplesmente. Tu, como eu te vejo, sim, porque eu vejo-te, existes porque sim. Talvez pela mesma razão que eu existo. Não conheço o não existir. Somos cúmplices da mesma vida, da mesma eternidade pouco sensata. Mas somos diferentes […].
Tu não podes ter criado nem o Universo nem a vida. Porque tu és o próprio universo e a própria vida... e a morte também. […] Tu és, essência original de tudo, para tudo, em tudo. E não precisas que te tornem transcendental para afirmar a tua existência evidente. Mas então porque te chamo nomes? Não importa aquilo que te chame. Sinto-te em mim e em tudo como a aprazível aparição do universo em mim e em tudo. És com toda a força de conseguir ser, porque também não sabes não ser. E eu entendo-te, não como entidade, mas como harmonia com tudo, sendo parte de ti e caminhando eternamente a teu lado numa comunhão com o universo.”


Não me lembro exactamente de quando tive consciência que me tornei ateu. Mas visto de longe, o processo foi semelhante ao papel do éter na física até ao século XX, como meio de propagação da radiação electromagnética: deixou de existir porque não fazia sentido que existisse.

[continua...]