Eu e tu (1)
Quando entrei no café, vindo das gotas frias da chuva e do ar gelado, já estavas à minha espera, sentado e virado para a montra que dava para a outra rua. Não me viste entrar nem ligaste ao tilintar provocado por um pequeno guizo pendurado no topo da porta. Retirei as mãos dos bolsos e senti com as pontas dos dedos o nariz frio. Enquanto desenrolo o cachecol e abro o casaco de lã dou por mim a contemplar-te mais uma vez. Sigo a linha da mão que brinca com o cinzeiro até a linha do braço se encontrar com o teu rosto. Contorno com os olhos os teus lábios semicerrados, o teu nariz e a tua testa, seguindo depois a tua cabeça, o fim do cabelo rapado e a descida do pescoço até às tuas costas arqueadas. Este contraste entre ti e a claridade que vem da enorme montra de vidro daria uma fotografia digna de ser premiada e sinto que era capaz de ficar ali bastante tempo a observar-te enquanto vagueias distraidamente nos teus pensamentos. Chego-me perto de ti e roubo-te ao teu mundo:
- Em que pensa o meu gajo? – Ah! O sorriso! Aquele sorriso que me atou as pernas e mãos. Que me deixou meio aparvalhado e a dizer disparates naquele primeiro encontro. Os lábios têm um poder especial sobre mim desenhados assim em sorriso. Os dentes alinhados e brancos. A casa da voz que me fala directamente ao coração.
- Lamechices! Vê tu bem o que eu ‘tava a pensar!
- Estávamos em sintonia portanto. Já te disse o quanto gosto de ti?
- Ena... Começaste cedo hoje. Vais ficar em pé?
- Seria original. – Disse enquanto me sentava. O teu rosto não era perfeito. Não eras saído de uma embalagem de plástico pronto para cozinhar e para agradar a todos os gostos. As nossas pernas tocam-se e pousas uma mão no meu joelho, afagando-o com o polegar. O teu toque é agradável.
- Que queres beber? Antes que eu comece a falar sem parar...
- Como de costume! A tagarela imparável...
- Parvo. Como eu estava a dizer, é melhor pedirmos qualquer coisa antes de começarmos a conversar porque hoje sinto-me capaz de falar horas!
- Não me digas que há dias em que não te sentes assim.
- Alguém acordou cheio de humor hoje! Por falar nisso, já vai sendo altura de não dormires até tão tarde e sobretudo não te atrasares...
- Hum, hum... Não íamos pedir qualquer coisa? – Faço sinal ao empregado. – É melhor não pedires alguma coisa com cafeína.
- Paixão, estamos num café! Ainda me batem se não consumir cafeína. – Apertas-me o joelho.
- Isso faz cócegas...
- Temos de tratar dessas cócegas... – Piscas-me o olho.
- Controla-te. – O empregado aproxima-se e não se esforça em ser simpático, limitando-se a dizer um simples ‘Bom-dia, o que vai ser?’ e sem grande convicção – Eu quero um Chocolate Quente e... hum... meia torrada mas com pouca manteiga. E tu?
- Eu quero um café com natas com muita cafeína! – Dizes com um ar provocador olhando para mim. O empregado não acha muita piada e mais uma vez pergunta mecanicamente ‘É tudo?’. Respondo afirmativamente e ele volta para o balcão. Começas imediatamente a falar sobre um debate que tinhas visto ontem na televisão. Falas muito com as mãos e com paixão. Gosto de ti. Apetece-me repetir. Mas fico a ouvir-te e a observar-te. Vejo-me abraçado a ti mas forço-me a voltar às tuas palavras. Vais certamente pedir a minha opinião a meio da conversa e quero estar à altura.
(continua)
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